quinta-feira, 31 de maio de 2007

A qualidade da escola faz diferença?

Grande parte das discussões sobre a questão das cotas sociais para o ingresso em universidades públicas se baseia na crença de que a qualidade da escola freqüentada pelo estudante candidato ao vestibular exerce uma grande influência em suas chances de sucesso.

Nossa pretensão com o presente texto é desmentir essa crença com base no exemplo da cidade norte-americana de Chicago, que pode ser conferido no capítulo 5 do livro Freackonomics de Steven D. Levitt. Vejamos o que aconteceu em Chicago:

Em 1954 a Suprema Corte dos Estados Unidos da América ordenou a dessegregação racial nas escolas daquele país. Sabemos que antes dessa decisão, os estudantes negros obtinham resultados piores nos exames de aprendizado. Após a dessegregação, esperava-se que os resultados dos estudantes negros melhorassem. No entanto, o que de fato ocorreu, foi que a maioria dos estudantes negros permaneceram em escolas cuja maioria dos estudantes era negra, as mesmas escolas que apresentavam resultados inferiores antes da decisão de 54.

No entanto, o poder público tratou de criar mecanismos para tentar integrar melhor as escolas da cidade. A partir de então, os estudantes daquela cidade passaram a poder se matricular em qualquer escola que desejassem. No entanto, para evitar a mudança de um número excessivo de estudantes para as escolas com melhores índices de aprendizado, e garantir a justiça no sistema, as vagas de transferência foram limitadas e definidas por sorteio.

Assim, alguns dos estudantes que tentaram se mudar para uma escola melhor conseguiram, enquanto outros não. Pelo senso comum, tenderíamos a acreditar que os estudantes que se transferiram para escolas melhores melhoraram seus rendimentos ao contrário do que aconteceria com os estudantes que foram mantidos nas escolas piores.

No entanto, o que se percebeu foi que a mudança de escola não fez praticamente nenhuma diferença. O desempenho dos estudantes que se transferiram para uma escola melhor não foi superior ao rendimento dos estudantes que tentaram se transferir para uma escola melhor e não conseguiram pelo sorteio. O que se notou, foi que o desempenho dos estudantes que se dispuseram a trocar de escola, procurando uma escola melhor, foi superior ao dos que não tentaram se transferir, independentemente da transferência ter sido ou não efetivada.

A conclusão que podemos tirar desse exemplo, é a de que de fato o que faz diferença no desempenho de um estudante é a sua dedicação, ou mesmo a sua preocupação, ou a preocupação de seus pais com seus estudos, e não necessariamente a qualidade das escolas onde estudaram. Nesse sentido, podemos dizer que a desvantagem que faz com que os estudantes oriundos de escolas publicas têm em relação aos estudantes oriundos de escolas privadas no Brasil, não é a qualidade da escola, mas a simples disposição demonstrada, pelo estudante, ou por seus pais em lhe proporcionar uma melhor educação.

Esse argumento, no entanto, não diminui a injustiça provocada pela desigualdade social no que diz respeito ao ingresso em universidades públicas. O problema dos estudantes mais pobres, não é a impossibilidade em pagar as mensalidades das escolas privadas, mas a inviabilidade, provocada pela pobreza, de ter uma educação mais dedicada.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

O QUE É A FILOSOFIA?

Estamos acostumados a ler nos manuais de Filosofia que em algum momento do séc. V a.C. alguns pensadores milésios, da Ásia Menor, como Tales e Anaximandro, teriam "inventado" uma nova forma de pensar. Essa história do "milagre grego", que para muitos explica com perfeição como o Ocidente deu ao mundo o dom do filosofar, contudo, está longe de ser satisfatória.

Primeiro que poucos manuais fazem a "concessão", bondosa, de ver no mesmo "século de Ouro" da democracia ateniense o florescer de outros pensadores, originários do oriente: por exemplo, Buda e Confúcio. E mesmo os que o fazem não enfrentam de forma clara uma questão crucial: existe a "filosofia oriental"? E, em caso afirmativo, o que há em comum entre ela e a ocidental?

Fato é que só podemos traçar as origens da filosofia grega até os milésios, o que não significa que tenham sido os primeiros a desenvolver um novo pensar, distinto do "mito" (a origem da filosofia como um dissociar do pensamento mítico tampouco é satisfatória, como se verá). Antes de Tales, não temos registros históricos, o que não impede que, por exemplo, os sumérios, os egípcios ou os hititas tenham feito algo parecido com a filosofa.

Porém, ainda que esses povos tivessem feito algo parecido com a reflexão filosófica dos gregos, isso não fez diferença para a trajetória do pensamento Ocidental nos últimos séculos.

Isso porque a filosofia se constitui de uma tradição de autores, auto-referente, caracterizada pela forma argumentada de construção de discursos. Explicando melhor: Filósofo é aquele que é assim caracterizado pelos pensadores que, tempos depois, se intitulam Filósofos, porque se valem de argumentos para debater com aqueles anteriores, acerca de quaisquer questões relevantes. Isso pode parecer absurdo à primeira vista, mas adiante mostrarei que os limites entre o filósofo e o não-filósofo podem ser mais tênuos do que se imagina.

Assim, se Platão não citou os sumérios, nem a tradição posterior o fez, nenhum contributo sumério foi reconhecido à filosofia posterior. Os sumérios, ainda que faticamente tenham sido decisivos para o pensamento milésio, simplesmente não integram a nossa tradição ocidental, hoje. Da mesma forma, quandoAristóteles estudou os pré-socráticos na Metafísica, eles "entraram na tradição", estando disponíveis para que, séculos depois, Nietzsche ou Heidegger dialogassem com eles.

Os manuais de filosofia se alicerçam no pressuposto de que é possível traçar um discurso sobre toda a filosofia através de seus pensadores mais significativos; isso nada mais é do que uma expressão desse caráter tradicional. Ainda dentro da mesma lógica, nenhum de nós, se perguntado, diria que Miguel de Cervantes, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Dostoievski ou José Saramago são filósofos; no entanto, em seus escritos encontramos algumas das reflexões mais profundas acerca da alma humana. Isso porque estão fora da nossa tradição filosófica ocidental.

É pelos motivos expostos acima que o Ocidente ainda fica desconfortável ao lidar com a pergunta sobre a filosofia oriental. Posso dizer que, pela definição que trouxe acima, existe de fato uma filosofia chinesa, mas é uma tradição distinta da nossa, na medida em que Descartes não debateu com Confúcio ou Mêncio, mas com Santo Tomás. A filosofia oriental aparece como interlocutora da nossa apenas em momentos pontuais, como quando Schopenhauer ficou fascinado pela mundivisão hindu.

Destaco, todavia, que nada impede que, contemporaneamente, unamos as tradições, pondo-as em diálogo. Isso necessariamente pressupõe deixar de lado o preconceito com aqueles povos que não têm, em seu passado, o "milagre grego". Um livro interessante, que se propõe essa tarefa, é "As filosofias do mundo - uma introdução histórica", de David Cooper, que penetra nas tradições do islã, hindu, da China, do Japão e da África.

Vejamos o caso dos chineses. Confúcio desempenhou um papel semelhante, na cultura chinesa, ao de Platão no Ocidente - propondo reflexões acerca de temas que eram vitais para sociedade naquele momento. Alguém dirá, neste ponto, que o dicurso religioso desempenha o mesmíssimo papel, e que se distingue da Filosofia porque não usa argumentos. Confúcio tenha misturado mito, religião e argumentos, daí não ser filósofo. O que caracterizaria, então, a filosofia ocidental seria a sua recusa em aceitar mitos como parte de eu pensamento.

Mas para qualquer pessoa com um pouco de conhecimento da nossa própria tradição, isso não procede. A forma como muitos filósofos ocidentais escreveram é prova que a nossa filosofia, retórica como deve ser, sempre aceitou muitas afirmações que não possuíam uma "fundamentação racional", fria na sua lógica do discurso. Vejamos: Platão filosofou em diálogos truncados, sem conclusão (que invocam inúmeros mitos como alegorias!), Nietzsche e Wittgenstein em aforismos breves e enigmáticos, Agostinho pelo memorialismo, Montaigne em ensaios bem idiossincráticos... e então, como ficamos? Continuamos com aquela visão ingênua de que o "tratado aristotélico" (que, aliás, não passa de anotações de aula) é a legítima forma de filosofar?

Recordo-me da frase de Roland Barthes acerca do que é literatura: "literatura é o que é literatura". Isso porque não há como dar uma definição exata de uma atividade que englobaria a "Comédie Humaine" de Zola, a poesia concreta da década de 1950, os ensaios do Roberto Pompeu de Toledo na VEJA, os hai-kais de Paulo Leminski, a "Orestéia" de Ésquilo e - por que não? - o diálogo platônico. O mesmo se dá na arte: o que é a arte depois da Vanguarda Européia, do penico de Duchamp e das esculturas de Nossa Senhora em merda de elefante? Diz o filósofo estético norte-americano Arthur Danto: arte é o que os membros do artworld - críticos, marchands, historiadores, apreciadores - dizem que é arte. Sendo assim, um reles caixote de madeira (sem mais nada) numa exposição do Museu Guggenheim é arte, mas uma peça publicitária inovadora e genial, que sensibiliza esteticamente multidões, não é.

O recurso à tradição é, assim, uma forma útil de tentar delimitar a filosofia, a literatura ou a arte.

Enfim, a filosofia, como toda forma de conhecimento humana, não pode ser classificada de forma estanque, por possuir contornos imprecisos. A melhor forma de explicar essa dificuldade em delimitá-la se dá com o uso da noção de "semelhança de família", de Wittgenstein. E, como decorrência disso, reafirmo que não faz sentido delimitar a sua "invenção" no milagre grego, nem recusar "status" de filosofia ao pensar hindu ou chinês, nem muito menos dizer que, por exemplo, a "Crítica da Razão Pura" apresenta reflexões mais filosóficas do que as de "Cem Dias de Sodoma e Gomorra", do Marquês de Sade.