domingo, 22 de julho de 2007

O Homem e a violência – A lição dos bonobos


Sempre sou questionado a respeito do meu interesse pelos macacos. Procuro, no presente texto, mostrar os fundamentos disso e a utilidade dessa reflexão para a Filosofia.

Por muitos anos, e em virtude das correntes contraculturais e progressistas da década de 1960 – o multiculturalismo, o feminismo, o movimento gay – falar em “natureza humana” foi considerado um sacrilégio. “Não existe natureza humana” (Sartre), era a fala corrente dos pós-modernistas e desconstrutivistas que, com isso, queriam afastar qualquer tipo de opressão, e em especial as que evocavam o holocausto nazista. Com isso, a cultura e a liberdade individual passaram a ser os únicos determinantes da personalidade de cada um.

Fato é que, desde a publicação de “O Gene Egoísta”, por Richard Dawkins (1975) e de “Sociobiologia”, por Edward O. Wilson (1975), parte significativa da comunidade científica passou a aceitar que existe, inegavelmente, uma natureza humana, condicionada por imperativos biológicos, oriundos do passado evolutivo das espécies*. Falarei novamente disso em texto futuro, bastando-nos aqui essa breve introdução.

Em texto recente do psicólogo evolucionista de Harvard Steven Pinker , intitulado “História da Violência” (2007), temos uma reflexão sobre o processo civilizatório e o declínio da violência na sociedade humana. Transcrevo um trecho:

The first is that Hobbes got it right. Life in a state of nature is nasty, brutish, and short, not because of a primal thirst for blood but because of the inescapable logic of anarchy. Any beings with a modicum of self-interest may be tempted to invade their neighbors to steal their resources. The resulting fear of attack will tempt the neighbors to strike first in preemptive self-defense, which will in turn tempt the first group to strike against them preemptively, and so on.

Em outro artigo, publicado em 2006 na Revista “Generel Psychologist”, chamado “The Blank Slate” (Tabula Rasa), em que resume os argumentos de seu livro homônimo, Pinker ataca o “mito do bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau. Para Pinker, o modelo do homo homini lupus de Thomas Hobbes seria mais preciso para descrever a conduta humana. Como animais que somos, temos uma inescapável tendência à violência, no que tange à disputa por alimentos, território ou parceiros sexuais.

Porém, se a violência é uma tendência natural, por que não dizer que a consideração pelo outro e o senso de justiça também não o sejam? O etológo Marc Hauser (Univ. Harvard) no livro “Moral Minds” (2006) e o primatólogo Frans de Waal (Univ. Emory), autor de “Primates and Philosophers” (2006), argumentam nesse sentido, trazendo boas evidências de que há algo em nossa moral que é inato, fruto do processo evolutivo do homem. Da mesma forma, outros animais – e, mais sensivelmente, os grandes primatas – apresentam fortes indícios de um comportamento moral.

No artigo publicado na Scientific American, “Sexo e sociedade entre os bonobos”, de Waal nos apresenta o fascinante comportamento sexual dessa espécie. Para quem não sabe, os bonobos são tão próximos dos humanos quanto as raposas dos cães – algo em torno de 98% de identidade genética. Até a década de 1930, achava-se que eram chimpanzés pigmeus, mas hoje se sabe que as diferenças entre ambos são significativas. E o traço mais marcante de seus hábitos é o seu deleite pela prática sexual.

Essa espécie de primata apresenta um comportamento que salta aos nossos olhos humanos: eles copulam, em quase 1/3 das vezes, face a face (até pouco tempo, achava-se que só nossa espécie fazia isso). Seu comportamento não se cinge à heterossexualidade, sendo comum que fêmeas pratiquem o contato gênito-genital, em que friccionam suas vulvas, e que machos façam o mesmo com seus pênis. Jovens e adultos copulam uns com os outros sem problemas, e já se comprovou que os bonobos chegam ao orgasmo tal qual os humanos, embora em menos tempo (cerca de 13 segundos). Outra semelhança conosco é que as fêmeas estão sempre sexualmente ativas, e não exclusivamente nas épocas de cio, como na maioria dos mamíferos.

Todavia, é importante ressaltar que os bonobos não ficam 24 horas por dia copulando; pelo contrário, o sexo em sua sociedade é tão casual quanto na nossa. No entanto, ele é praticado em circunstâncias inusitadas para nós. Afirma de Waal: “tudo (não só comida) que suscita interesse a mais de um bonobo resulta em contatos sexuais. Se dois bonobos se aproximam de uma caixa de papelão lançada na área em que estão, eles copularão brevemente antes de brincar com a caixa. Na maioria das outras espécies, tais situações levam a brigas. Mas os bonbos são tolerantes, talvez porque usem o sexo para desviar a atenção e dissolver a tensão”.

E isso ocorre sempre: se encontram comida, dois bonobos copulam e depois dividem amigavelmente a refeição. Se brigam, a reconciliação se dá logo em seguida, pela prática sexual. “Um macho enciumado pode afugentar outro para longe de determinada fêmea, após o que ambos se reúnem e fazem fricção escrotal. Da mesma forma, após uma fêmea golpear um jovem, a mãe deste pode revidar, ação imediatamente seguida pelo contato gênito-genital entre as duas adultas”, escreve de Waal.

Os bonobos têm uma sociedade centrada nas fêmeas. São elas quem definem quem faz parte do grupo, e geralmente os filhotes de bonobo (que são criados pelas mães até adquirem a autonomia, por volta dos 5 anos de idade) ficam ligados às mães por toda a vida. Sendo assim, têm uma existência pacífica, diferente da violência verificada em grupos de gorilas ou chimpanzés.

Os chimpanzés, por sua vez, vivem em grupos dominados por machos. Estes não dividem os alimentos com as fêmeas, que ficam apenas com os restos de suas bananas. Os chimpanzés têm uma conduta extremamente violenta, sendo comuns os desentendimentos violentos e as tentativas de se gabar perante o restante do grupo, arremessando pedras, arrancando pequenas árvores do solo e mantendo a ruidosa performance por vários minutos. E o sexo entre os chimpanzés não tem o papel crucial que desempenha na sociedade bonobo.


Que conclusão podemos tirar de nossos irmãos primatas? A meu ver, os bonobos são a demonstração de que o mote “make love, not war” dos hippies não é despido de sentido. Na sociedade humana, em virtude da nossa estrutura biológica tendente à monogamia e à formação de núcleos familiares, condutas como a promiscuidade e o adultério foram historicamente cercados de tabus e proibições. Aliás, a própria sexualidade dentro do casamento sempre foi socialmente controlada, numa regulação muitas vezes extremamente perniciosa, como salientaram, com argumentos variados, Freud, Marcuse, Reich e Foucault.

Com isso, talvez Pinker pudesse acrescentar à sua análise da violência o fato que os humanos, em vez de se renderem à lição dos bonobos, e dar vazão à sexualidade como forma de aliviar as tensões inerentes à existência, preferiram sacrificar todos os desviantes da tradicional moral sexual. As bruxas queimadas, os homossexuais perseguidos, as adúlteras apedrejadas, a excisão clitoriana e a aversão a qualquer pessoa que apresente um comportamento “desviante”, potencial ameaça aos valores dos “homens de bem”, seriam fruto, entre outras coisas, de tesão reprimido.

Deixando de lado os bonobos, gostaria ainda de citar um fato interessante, que tem sido destacado pelos antropólogos. Por que o Homo sapiens está sozinho em seu gênero taxonômico hoje? A resposta seria que, muito antes de Hitler, Stalin, Mão Tsé-Tung, Pol Pot, do genocídio dos armênios (1915-1917), ou do massacre indígena na invasão européia das Américas, os nossos ancestrais teriam se tornado exímios genocidas, eliminando, por exemplo, os grupos de homens de neandertal.

Quem sabe, se os homens das cavernas, em vez de se armarem de pedras e ossos até os dentes, tivessem simplesmente liberado seu tesão, ainda poderíamos hoje bater um papo com nossos irmãos hominídeos, tomando uma cerveja bem gelada?
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* Que se tome aqui a expressão “natureza humana” com cautela. A cultura, em muitos aspectos, é capaz de “contrariar” imperativos puramente biológicos – a camisinha é o mais evidente exemplo disso. Há que se considerar, também, que com os avanços tecnológicos – a manipulação genética, a nanotecnologia, implantação de membros ou acessórios biônicos, tudo aquilo que tem saído das páginas da ficção científica para a realidade – podem, num futuro próximo, alterar os nossos condicionantes evolutivamente forjados, ao longo de milhões de anos.