sábado, 7 de julho de 2007

As formas de conhecimento e o lugar epistemológico do Direito*

Entrando numa velha e infindável discussão, proponho-me a enfrentar a tormentosa questão da diferença entre as formas do conhecimento. Arriscando uma breve definição:

1. O conhecimento religioso se baseia na revelação, ou seja, na aceitação de uma narrativa que explique uma visão de mundo. Essa narrativa, usando termos aristotélicos, não precisa ser verdadeira, mas verossímil. Sua transmissão se dá por uma tradição, envolvendo grupos de pessoas que têm na religião um laço de afinidade, e geralmente vem acompanhada de ritos, iconografia, proibições e tabus. A seria o sentimento de pertencimento a essa comunidade de crentes, somada à satisfação pessoal em possuir a resposta para os mistérios que atormentam a raça humana.


2. A filosofia, como já abordado no primeiro texto deste blog, é uma tradição de discursos que historicamente dialogam entre si, de forma argumentada. Embora seus argumentos usualmente recorram a metáforas, mitos, ironia, formas retóricas, podem ser questionados com o auxílio da lógica ou de outros argumentos, mais precisos ou mais convincentes, conforme o grau de exigência do auditório competente.




2. A ciência, por sua vez, apóia-se num amplo leque de métodos, insatisfatoriamente chamado de “método científico” (isso porque cada ciência tem o seu, completamente particular), ou seja, trabalha, grosso modo, com a confirmação ou não de hipóteses através da observação de evidências empíricas. Apóia-se, portanto, em algo convencionado como dado – seja ele organelas num microscópio, pontos de fusão de materiais ou estatísticas sobre a distância das galáxias. As teorias científicas são falsificáveis, ou seja, podem sempre ser postas à prova, por outros membros da comunidade científica, por métodos aceitos, e são continuamente substituídas por descrições melhores dos fenômenos.



4. A técnica é a aplicação prática de teorias científicas, ou, num sentido mais genérico, o modus operandi que permite a consecução de fins práticos. Apóia-se fundamentalmente nas descobertas científicas, mas pode ser melhorada pragmaticamente, à medida em que é realizada.

Considerando que toda classificação é incompleta, vamos dar exemplos práticos das formulações acima:

1. A filosofia política trabalha com especulações acerca da melhor forma de governo, os princípios e fundamentos do poder, ou como o Estado pode aproximar-se de seus fins ou degenerar na opressão. A ciência política trabalha com dados – sejam eles os votos dos partidos nas deliberações do Congresso, ou a taxa de comparecimento às urnas, o índice de aprovação de um governo – para chegar a suas conclusões.


2. A engenharia é uma técnica, pois se vale de conhecimentos da física, da matemática, da química, etc, para erguer uma construção sólida, que se mantenha firme por anos a fio; mas ela mesma, enquanto técnica, pode desenvolver formas mais eficazes de construir ou de lidar com os materiais.


3. O evolucionismo darwiniano é uma teoria científica, pois a qualquer momento, se surgirem evidências incompatíveis com sua formulação, ele cairá por terra e será substituído por outra teoria. O criacionismo é discurso religioso porque inadmite falsificação, uma vez que está narrado, ipsis litteris, na Bíblia.


4. A economia é uma ciência, embora as ciências humanas tenham uma metodologia distinta das naturais, pois trabalha com dados – produto interno bruto, fluxo de capitais, índice de desenvolvimento humano, lucros, decréscimo das exportações, etc.

E o Direito, como ficaria em nossa definição? O problema aqui é maior, porque por muito tempo os juristas insistiram em ver chifre em cabeça de cavalo – em outras palavras, ciência do Direito onde não havia nada parecido com uma ciência. Onde já se viu: chamar a memorização de dispositivos legais de ciência? Proponho, então, um novo enquadramento para os conhecimentos jurídicos:

1. A Filosofia do Direito é a forma discursiva argumentada de discussão de temas jurídicos. Ela engloba, então, aquilo a que costumeiramente, e equivocadamente, a meu ver, se chama de ciência do Direito: a discussão sobre a constitucionalidade ou a validade de uma norma, as definições e as classificações dos institutos jurídicos, a sua posição no ordenamento. Envolve ainda aquilo que tradicionalmente se chama de filosofia do Direito: os fundamentos do Direito, da Justiça e dos direitos subjetivos, a hermenêutica de textos jurídicos, a questão das antinomias, a distinção entre regras e princípios.


2. A Ciência do Direito é um estudo da eficácia. Os seus dados são aqueles referentes ao funcionamento, à aceitação e à eficácia dos institutos jurídicos: se o endurecimento das leis penais diminui o crime, se uma nova lei do divórcio reduz as separações litigiosas, se a evolução da jurisprudência tem alavancado ou entravado o crescimento econômico. Nas Faculdades de Direito, esta dimensão, na minha opinião, a mais relevante, foi relegada a uma pouco valorizada Sociologia Jurídica.


3. A técnica jurídica é aquilo que fazemos a maior parte do tempo na Faculdade de Direito: decorar textos legais, pesquisar as decisões mais recentes do STF e do STJ, aprender qual é o procedimento civil, administrativo ou penal para formular uma acusação ou defesa, quais os instrumentos processuais para invalidar certa decisão judicial. É como um joguinho de xadrez. Ainda assim, muitos teimam em chamar também isso de ciência.

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* Esta formulação teria sido impossível sem os debates com Mateus e Jéferson, aos quais agradeço por possibilitarem os argumentos aqui trazidos.