No ambiente hostil dos EUA da Era Bush, não é de espantar que os ateus, cientistas, filósofos monistas e cidadãos não-religiosos em geral se unam contra a investida da direita cristã fundamentalista, que tenta banir Darwin dos currículos escolares.
Em um livro de 1995, chamado “A perigosa idéia de Darwin”, Dennett afirma que o perigo da teoria da seleção natural é que, ao aceitarmos seus pressupostos, temos que concordar que tudo aquilo que resulta da evolução é, de fato, um efeito colateral de um processo algorítmico. Com efeito, o nosso senso comum rejeita o acaso e prefere a teleologia (“uma intenção por trás da realidade”) como sustentáculo de todas as formas de vida.
Dennett, então, tenta encontrar uma explicação para um problema tão complexo quanto o da consciência sem incorrer em erros antigos da epistemologia e da filosofia da mente. Suas linhas principais estão no livro “Consciouness Explained”, ainda inédito no Brasil.
Nas palavras do prof. Paulo Margutti, Dennett acredita que a “melhor explicação do funcionamento da consciência será fornecido por uma abordagem dos seres humanos enquanto organismos biológicos sob pressões evolutivas. (...) A abordagem de Dennett é não apenas naturalista, mas também funcionalista, no sentido de que os organismos humanos são máquinas biológicas cujo comportamento é controlado por seus cérebros”.
Dennett é cético quanto à noção, muito difundida na tradição filosófica ocidental, de que temos um acesso privilegiado à nossa experiência individual. A perspectiva de primeira pessoa, em que o indivíduo relata o que se passa em sua consciência para que os outros escutem – tal como fez Descartes – pode simplesmente estar equivocada. Assim, embora os eventos mentais que experimentamos pareçam-nos próximos e límpidos, e a leitura que fazemos deles, imune ao erro, a única forma verdadeiramente cientifica de explicar a consciência passa por uma perspectiva de terceira pessoa, do tipo behaviorista: só são dados os fatos recolhidos “de fora”. Esse método se chama heterofenomenologia.
Outra crítica que Dennett faz a um erro comum da tradição é o “modelo do teatro cartesiano”, um pano de fundo sobre o qual se inscreveriam as experiências conscientes (conteúdos mentais). O filósofo sustenta que, ao se rejeitar a “res cogitans” cartesiana, os materialistas frequentemente esquecem que a decorrência disso é repelir também a idéia de que existe um “centro funcional” para o cérebro, onde todas as sensações e impressões são reunidas e a corrente de consciência ocorre. Eis o local onde habitaria o homúnculo, o fantasma da máquina, a assistir uma sucessão de eventos no palco do teatro (os dados fornecidos pelos estímulos corporais, pelos cinco sentidos, etc.), selecionando-os conforme sua “vontade”.
Muitos neurocientistas têm investido pesadamente em pesquisas para localizar, na estrutura cerebral, algum lócus responsável pela consciência. Para Dennett, esse esforço é inócuo, pois insiste no erro de Descartes.
No lugar do “teatro cartesiano”, Dennett propõe o “modelo dos rascunhos múltiplos”. Conforme essa teoria, fisicalista, inspirada pelo cognitivismo, a consciência tem a ver com a forma como processamos informações. O cérebro funciona através de processos paralelos, de múltiplos caminhos de interpretação e elaboração dos dados sensoriais. Constantemente, os dados que são captados pelo corpo – seja pelos sentidos como visão e audição, seja uma dor de barriga, o suor diante do calor – são selecionados e organizados, mas sem a necessidade de intervenção de um homúnculo “chefe”.
Nesse processo simultâneo de “edição”, que ocorre em diferentes porções do cérebro, surge algo como uma corrente narrativa. Diz Dennett que “em qualquer ponto no tempo há múltiplos ‘rascunhos’ de fragmentos de narrativa, em vários estágios de edição, em vários lugares no cérebro“. Assim, esses rascunhos nunca chegam a uma “narrativa final”, antes competem entre si, alguns deles dando grandes contribuições, outros sendo abandonados, outros ainda influenciando o nosso comportamento verbal. A esse caráter fragmentário da experiência consciente, Dennett deu o nome de “máquina joyceana”, evocando as digressões que encontramos nas páginas do irlandês James Joyce.
Assim, para que um conteúdo mental se torne consciente, ele tem que ser selecionado entre diversos conteúdos mentais. É como se houvesse um “pandemônio” em nossas cabeças, e os estímulos geram diversas versões que se rivalizam, ora predominando umas, ora outras. Portanto, não há um fluxo de consciência unívoco, não há narrativa central privilegiada.
De onde viria então a nossa impressão de haver um “ego”? Bem, na medida em que essas narrativas aparecem para nós como se viessem todas de uma mesma fonte, temos a impressão de que existe um agente unificado, um “centro de gravidade narrativa”, que tece essas histórias – sendo que, na verdade, são elas que, em sua sucessão, tecem a nós mesmos.
Postular esse centro de gravidade seria apenas uma forma útil de explicar a consciência – tanto quanto as noções da física, como o átomo, ajudam a explicar certos fenômenos. Vamos lembrar que Dennett é um reabilitador da “folk psychology”, na medida em que ela tem um forte potencial explicativo.
Na nossa vida cotidiana, o modelo dos rascunhos múltiplos pode não fazer muita diferença – sentimos que existe um “eu”, sentimos que somos livres, embora a ciência nos mostre que a cognição seja muito mais complexa que isso.
E, se até aqui essa teoria soou muito estranha, até desconfortável, lembremo-nos de como tantas vezes o senso comum nos tranqüiliza (“a Terra não é plana?”), mas acaba escamoteando o funcionamento das coisas. Abandonar o fantasma da máquina e aceitar nossas mentes como o resultado de processos físicos significa, inclusive, que aquilo que chamamos de espírito é diretamente influenciado por fatores neurológicos. E aceitar que o “eu” não é uma alma incorpórea significa que ele é constituído de faculdades cerebrais que podem ser lesionadas (e portanto, afetadas, quando não definitivamente destruídas), que mudam com a idade, e que podem lentamente desaparecer à medida que a velhice do corpo se aproxima.
Diante disso, eu diria que um mundo sem Deus pode ser muito mais “iluminado”, mas definitivamente é muito mais incômodo.