terça-feira, 17 de julho de 2007

1. Porque ainda faz sentido falar em esquerda e direita

Há algumas semanas, a revista VEJA, a quarta maior revista semanal do mundo e a inconteste líder do setor no Brasil, declarou, mais uma vez, a morte da esquerda.

A reportagem, a respeito das eleições presidenciais na França, dizia ipsis litteris que, desde a queda do muro de Berlim, a direita se tornara, indubitavelmente, o único programa político viável.

Mais adiante, um quadro esquemático mostrava como, desde a formação da Assembléia Nacional em 1789, esquerda e direita vinham gradualmente se aproximando, a ponto de se confundir.

Um argumento exaustivamente utilizado pelos grupos conservadores em todo o mundo é que, após a queda do Muro, não há que se falar mais em projetos de esquerda. O colapso do socialismo real, o descrédito da revolução sonhada pela clarividência de Marx teriam declarado o “Fim da História”.

Os grupos que ainda se intitulavam “de esquerda”, por sua vez, passaram a década de 1990 vociferando contra uma gargantua ominosa, chamada neoliberalismo, que a tudo e todos devorava impiedosamente, e prevendo, mais uma vez, uma inevitável crise no sistema, que implodiria por sua própria insustentabilidade.

E assim, ficamos numa corda bamba, em que o reducionismo ideológico ataca de ambos os lados: a direita, tomando o emblema da queda do Muro como demonstração inconteste da inviabilidade de contestação de todo o sistema capitalista global, deduziu daí que toda a esquerda estaria agindo equivocadamente, senão de má-fé; a esquerda, por sua vez, deixou de lado pretensões práticas de mudança e, por falta de algo melhor, aderiu à globalização, embora continue a formular protestos tímidos e a prever a derrocada iminente do capitalismo.

Ora, por um lado, claro está que no Ocidente o espectro político das nações continua dividido em esquerda e direita, o que põe em xeque o reducionismo ideológico da direita. Por outro lado, que o sistema econômico global apresente contradições e injustiças gritantes é evidente – mas que disso resulte que estejamos à beira de uma revolução social, ou de seu colapso final, não passa de devaneio.

Fato é que, nos últimos 20 anos, ocorreu um forte recrudescimento conservador no panorama político. O diagnóstico de uma hegemonia neoliberal não é de todo impreciso. Como a esquerda parece não ter nenhum projeto “alternativo” consistente, o poder só lhe cabe ocasionalmente, quando se compromete a aceitar premissas históricas da direita – livre-comércio, redução do Estado, desregulamentação do mercado – e a renunciar a bandeiras históricas suas – direitos trabalhistas e previdenciários, um Estado social e interventor.

Enfim, a esquerda “real”, isto é, aquela que está no páreo das disputas eleitorais nas democracias ocidentais, largou de vez a utopia de botar abaixo o “sistema” e fundar, de forma abrupta e irreversível, uma “nova ordem”, na qual a justiça e a igualdade sociais imperariam, num passe de mágica.

Mas então no que consistiriam esquerda e direita hoje, num ambiente pós-utopia?

Olhando o eleitorado da esquerda e da direita em países como EUA, Inglaterra, Alemanha, França, Brasil, México, conclui-se que, se por um lado há um amplo consenso sobre alguns valores – a democracia, os direitos fundamentais – ainda restaram diferenças nítidas entre os votantes conservadores e os progressistas.

Se você está em solo norte-americano e encontra um sujeito que vê na Guerra ao Terror uma necessidade inadiável, na National Rifle Association um bastião das liberdades públicas, na sua igreja a realização de sua vida e no Marilyn Manson a figura do anticristo, e vai dirigindo seu SUV para o trabalho, você está, com virtualmente 100% de certeza, diante de um eleitor dos republicanos. Da mesma forma, se você topa com outro indivíduo, que é forte defensor das minorias – gays, negros, latinos –, pacifista convicto, acha o criacionismo uma piada de mau gosto e vai de bicicleta para seu emprego, devido à preocupação com o Aquecimento Global, não tem como errar: ele vai votar pelos democratas nas próximas eleições.

Como não falar então em uma direita e uma esquerda nos EUA? É fato que os ideais comunistas nunca vicejaram com vigor na terrinha do Tio Sam, mas a clivagem entre progressistas e conservadores é, e sempre foi, nítida.

O mesmo ocorre na Europa (o caso do Brasil será tratado no próximo texto): há um eleitorado conservador, chegado em indicadores expressos no mais puro economês e na redução de gastos governamentais, e outro progressista, que busca com maior afinco soluções de justiça social e distribuição de renda, nacional e internacionalmente.

Se na década de 1960 a esquerda deu a “agenda” política para o mundo – com as rebeliões estudantis de contestação, a contracultura, o movimento hippie e o ambientalismo, o multiculturalismo, o feminismo, a luta pelos direitos dos negros e dos gays – hoje esse papel vem cabendo à direita, na sua condução das finanças e negócios globais. O jogo ideológico de forças mudou, mas nem por isso há consenso, nem por isso há “fim da História”, como profetizou a Revista VEJA.

Com o fim da utopia revolucionária, o que restou de divisão no espectro político do Ocidente foi então o conservadorismo, de um lado, e o progressismo, de outro. Enquanto não surgir uma proposta de fato válida para substituir o modelo sócio-econômico atual, conservadores e progressistas não terão outra saída senão aceitá-lo, e deslocar as suas discordâncias para outros campos – a política cambial e tributária, a questão ambiental, a condução das relações internacionais, a flexibilização de direitos trabalhistas, as formas de combate ao crime e outros assuntos, menos “universais”, menos “revolucionários”, mas, enfim, muito mais práticos.