quarta-feira, 6 de junho de 2007

Imperativo Categórico e Personalidade Jurídica do Estado

Saudações à Liberdade, e sua imperatividade.

A noção de imperativo categórico formulada por Immanuel Kant (1724-1804) fundou as bases de uma filosofia moral ocidental. Numa tentativa de sistematização do agir ético do homem, o filósofo conferiu substrato à individualidade, à subjetividade e à relação desse indivíduo-sujeito com o mundo-sociedade no qual se insere. Indispensável ao ideário liberal que começava a tomar as rédeas do ocidente no século XVIII. Lembremos da velha máxima: "age de modo tal que possas querer que sua conduta se torne lei universal."

Ora, não poderíamos pensar em sujeito, em pessoa efetivamente sem essa noção. Os seres humanos não somos designados como "animais políticos" (zoon politikon)? Nossa vida em sociedade depende, no mínimo, do estabelecimento de relações de similitude e diferença. Afinal, a vocação gregária do ser humano requer ordem. Perceber o outro, o incomum, e atribuir-lhe aquilo que para si vale é, no mínimo, exigível. Num verdadeiro retorno reflexivo, o outro afirma o dever-ser do pensamento do indivíduo.

A gênese normativa do Direito encontra solo fértil nessa concepção. É a imperatividade do valor individual, combinada com o Poder (seja ele atribuído por deuses, hereditário, pragmaticamente conquistado) que impulsiona à base fundante (no caso do Estado de Direito) da Lei. E com ela, origina-se a personalidade jurídica.

O Estado adquire sua personalidade jurídica, não obstante, ao ser juridicamente fundado pela Lei. Através da Constituição. Em termos: determinado grupo de pessoas (podem chamar de elites), bem-sucedidos em sua missão política (tendo alcançado o poder), exteriorizam determinados valores próprios, cuja universalidade não só é garantida pela coercibilidade estatal, mas que também limita, valorativamente, a própria atuação do Estado. Afinal, moralidade como princípio da Administração Pública não é apenas mais um princípio constitucional. Integra, antes de tudo, um complexo axiológico do arcabouço constituinte.

Aliado a esse imperativo de conduta, cujo ápice de objetividade e de correspondência pretendida (o constituinte intenciona que seus valores sejam regras de conduta universal, ao mesmo tempo que conte com receptividade social) é a Constituição mesma, temos na origem do Estado-pessoa outro imperativo denunciado na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785): o imperativo prático. É ele uma espécie de guia do curso político: "age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio". A actio politica do homem, a consecução do chamado "bem-comum" entretanto, flutua na utopia kantiana. Quisera o bem-estar político guardar relação com essa ética da liberdade a todo momento do cotidiano. A desproporção ou mesmo a não relação meio/fim cria uma falha da racionalidade política. Quisera esta fosse apenas guiada por seus fins.

À parte tais divagações, o Estado de Direito tem sua personalidade fundada não mais numa pretensão de universidade axiológica, mas numa efetividade dessa universalidade. Aos cidadãos, exigir respeito aos princípios constitucionais resta-nos, como única forma de bom-convívio e fraternidade.

11 comentários:

Mateus disse...

João,

e a facticidade? Kant me parece ter o mesmo desejo de uma Madre Teresa. No entanto, sem o carisma.

As perguntas são muitas, mas me limitarei a duas:
Como julgar se uma pessoa está agindo racionalmene ou não? E se formos todos loucos?

Se conseguirmos descobrir que a pessoa está agindo contra a razão, o que podemos fazer, se ela preferir continuar agindo anti-racionalmente?

Ps.: Não era o tema central do seu texto, mas eu preciso de uma definição qualquer para razão, racionalidade e irracional.

Ricardo Horta disse...

Achei interessante ler seu texto porque fui me dando conta do tanto que Habermas é fissurado em Kant.

Além da crítica do Mateus "supra", que faço minha, vou caminhar em outra direção: o que exatamente é o "valor" plasmado na Constituição?

Ora, temos a moralidade inscrita no art. 37, para a Administração Pública, mas isso definitivamente não significa que haja consenso social acerca disso (pelo contrário, tendo por base bons intérpretes do Brasil, como Gilberto Freyre e Roberto DaMatta, nós somos um povo de corruptos e anti-legalistas). Outro exemplo: a "dignidade da pessoa humana" é um "valor" completamente diferente para um evangélico fundamentalista e para um liberal ateu.

Como então "exigir respeito" a esses princípios??? Isso me soou extremamente autoritário - senão simplesmente solipsista.

Por fim, se Justiça Universal só existe se concreta (vide Salgado), e univ. axiológica do Estado deve ser efetiva, isso por acaso significa que uma e outra não passam de metas, irrealizáveis na prática?

Joao Vitor Loureiro disse...

Mateus,

1) Eu tbm me simpatizo por Madre Teresa. Talvez se tivéssemos TV em mil setecentos e bolota, Kant pareceria-nos algo simpático. Até o Bento XVI ficou simpático para as pessoas.

2)Como julgar se o Direito é racional ou não? Como julgar se o que estamos fazendo aqui eh racional ou não? Como julgar se tudo o que vc faz não é a mesma coisa que um macaco faz, apenas num contexto diferente? Por favor, essa pergunta vai continuar feito flogisto, éter, etc. (para usar seus termos).

3)Se um sujeito comete um crime, movido por sua paixão, emoção loucura ou qualquer estado fora da razão, usaremos da "nossa odiosa racionalidade" para julgá-lo. Infelizmente é assim, quem está certo é quem usa os meios (Estado, coerção, poder) para alcançar seu fim e garantir a "ordem". Ou então relativizaremos tudo.

Joao Vitor Loureiro disse...

O meio de que se utiliza o Estado para o respeito aos princípios é a coerção. Sempre foi. Cabe aos nossos juízes terem noção disso. Valrem-se de princípios. Os órgãos de controle (TCU, MP, estão aí para isso tbm).

Na prática, a Constituição devia era ser ensinada nas escolas, assegurando a essa nação semi-analfabeta que só será plena no dia em que souber o quanto pode.(limitado ou não, acho que ninguém discorda desse pensamento).

Ricardo Horta disse...

João,

1. A constituição pode ser interpretada... in many ways... depende da ideologia. O que eu disse continua.

2. O Estado-juiz julga racionalmente? Então as crenças religiosas, metafísicas, personalíssimas, etc, do juiz não influem nada? NADA? Por favor, você não acredita nessa historinha para boi dormir...

Mateus disse...

O Ricardo usa Razão sarcasticamente, porque o João, e você aparentemente também o usa como base de raciocínio implícita... A sua indefinição terminológica provoca nosso sarcasmo...

Joao Vitor Loureiro disse...

1- "Exigir respeito" importa valer-se dos princípios constitucionais como base de interpretação jurídica. Menosprezá-los é ferir a ordem constitucional, inaceitável no Estado Democrático de Direito. Sua imperatividade reside em sua absoluta historicidade (resultado dum processo social de fundamentação constitucional- da qual fizeram parte interpretações subjetivas, visões de mundo particulares e embates de grupos que objetivaram atingir determinado fim). Afinal, já diriam os relativistas: TUDO é relativo.

Anônimo disse...

johnny nao gostei do texto. acho todos os paragrafos do texto (menos 1) problematicos, mas estou com preguiça de escrever agora. os pontos mais graves sao metodologicos: o primeiro, a analogia pessoa/estado eh uma furada milenar, feita em varias teorias chamadas de primeira imagem (que regressam a natureza humana em suas explicacoes). estado nao tem dimensao axiologica, nem consciencia, senso de dever, certo ou errado dentre outras coisas porque a politica eh um fenomeno amoral e o comportamento de organizaçoes da-se em respostas a demandas e sao melhor compreendidas na forma input/output. as teorias fundadas em primeira imagem para leitura de instituiçoes ou fenomenos sociais acabaram no seculo XIX. segundo, a ideia de fundaçao do arcabouço da moral ocidental em kant...bem, ele pretendia mesmo ser declaradamente universalista. depois, mto antes dele jah havia milhares de escritos acerca da moral, sendo q se ele foi pioneiro em algo, foi em trazer o dever para dentro do individuo, a parte de elementos externos como a sociedade ou a religiao. but i'll be back. paragrafo, por paragrafo...rsrs

Joao Vitor Loureiro disse...

Agente Secreto, sua identidade é perceptível...

1- Que bom que você não gostou do texto. Isso talvez tenha te impulsionado a escrever algo por essas bandas. Ressalte o que você não acha problemático.

2- A "furada milenar" da analogia Estado/pessoa é precisamente furada porque há uma pretensão sociológica (e metodológica)dos dias atuais de colocar as coisas como se dependessem apenas de relações diretas e dadas, naturais, de respostas e demandas imediatas. Reduzir o debate a esse pensamento economicista é de uma antijuridicidade absurda. A "amoralidade do fenômeno político" é expressão dessa desconsideração axiológica da gênese e estrutura das instituições sociais.

3- O breve texto, feito entre um fim de expediente e um ônibus a ser pego, não tem pretensão de dizer que Kant fundou A moral ocidental- leia novamente- ele fundou UMA Filosofia moral do ocidente. Pretende, aí sim, aproximar essa concepção de moral internalista à gênese de valores constitucionais e do próprio Estado de Direito.

A perda dos referenciais de valor do Estado são sintomas de seu fracasso contemporâneo.

Comente mais, gostei de seus comentários.:)

Ricardo Horta disse...

Engraçado... um Estado sem valores para mim é o mais desejável numa sociedade democrática...

Afora a noção de "Patriotismo Constitucional" do Habermas, que eu acho muito bacana, não vejo quaisquer valores que devam ser encampados por toda a socidade num contexto atual.

E expresse também por que não aceitar Maquiavel e a amoralidade da política. Ora, em política se gnha ou se perde. Não vejo nada de ético ou antiético nessa sua lógica de funcionamento.

Joao Vitor Loureiro disse...

Dignidade da pessoa humana, função social da propriedade, não-intervenção, valor social do trabalho e livre-iniciativa não são plasmas constitucionais? Não são valores constitucionais? Que passam a ser valores do Estado e do próprio Direito?

O processo de construção desses valores, claro, não tem caráter necessariamente moral- a política. Concordo com você. É apenas um meio para se chegar a um fim. Quem tem o poder dita as regras do jogo e, como a sociedade é democrática, e seu kratós não pode ser afastado, os valores diversos são filtrados no processo político, passando somente aqueles dos detentores históricos do poder.