domingo, 23 de setembro de 2007

Digressões em torno da liberdade humana

O filósofo Daniel Dennett, em seu livro Freedom Evolves (inédito no Brasil), queixa-se da “agenda oculta que tende a distorcer as teorias em todas as ciências sociais e da vida”: “a antipatia velada” a duas idéias, a de que “nossas mentes são apenas o que os nossos cérebros fazem sem milagres”, e a de que “os talentos do nosso cérebro tiveram que evoluir como qualquer outra maravilha da natureza”. Para defender essas duas idéias, vamos partir da crítica daquela que foi a ideologia dominante nas ciências sociais do século XX: o marxismo.

Por trás da utopia marxista, inspirada originalmente no bom selvagem de Rousseau (aquele que é virtuoso no estado de natureza, mas corrompido pela sociedade), sempre houve o propósito de re-fundar toda a cultura humana. Construir o comunismo era, antes de tudo, incutir nas mentes de todos o senso de igualdade. Assim, a solidariedade com o sofrimento alheio e a luta contra a opressão do homem pelo homem, levariam as pessoas a recusarem todo tipo de domínio, o que resultaria num futuro sem classes ou hierarquias.

Implícito por trás desse programa, encontramos, como em boa parte da teoria social que vicejou no século XX, a idéia da “Tabula Rasa”. A premissa era: se o que determina a conduta humana são os valores e práticas histórica e socioculturalmente construídos, bastaria promover uma revisão desses valores para se fundar uma nova humanidade.

Tendo essa idéia em vista, Mao Tsé-Tung levou a cabo a Revolução Cultural (1967-1977), uma das maiores atrocidades da História da Humanidade, com um saldo de pelo menos 1 milhão e meio de mortos, na qual bandos de jovens (era preciso começar pela juventude ingênua e com a “tabula” ainda vazia, não é mesmo?) assassinavam, destruíam obras de arte, templos e edificações milenares, humilhavam e violentavam seus compatriotas. Isso sem falar na “reeducação” dos “burgueses” (leia-se intelectuais). O Camboja de Pol Pot não fez diferente: para erradicar a “cultura burguesa”, culpada pela desigualdade e o sofrimento do povo, mandava-se matar qualquer um que usasse óculos. No fim das contas, 1/5 da população do país foi massacrada. Contudo, nem nesses dois países, nem na União Soviética, a estrutura socialista foi capaz de eliminar a desigualdade e a exploração, tendo havido, no fim das contas, apenas uma troca na opressora elite dirigente.

O que descobrimos a duras penas com esses e outros exemplos é que algumas características do homem simplesmente não podem ser “culturalmente alteradas”. Isso é apenas um indício de que temos boas razões para resgatarmos a noção de “natureza humana”, nesses tempos em que o pós-modernismo proscreveu essa expressão do vocabulário, por não ser “politicamente correta”.

Aliás, o debate atual, nesse início de milênio, é mesmo o de retomada do tradicional problema da filogenia versus ontogenia (ou nature vs. nurture), que no início do século XX dominou o debate entre os pais das ciências sociais (Sigmund Freud, Émile Durkheim, Franz Boas) e a ideologia racista e arrogante do século anterior: o comportamento é fruto da cultura ou da biologia? Naquela época, prevaleceu a tese da “Tabula Rasa”, que hoje é um lugar-comum, e que afirma que somos condicionados apenas por fatores socioculturais.

Não só isso: o senso comum tem clareza de que o ser humano é um ser dotado de uma alma ou espírito, e que essa é uma substância incorpórea que governa o corpo, conforme seu livre-arbítrio e seus valores. Acontece que esse dualismo mofado só pode ser sustentado dogmaticamente, via convicção religiosa. Cientificamente, precisa-se de uma relação de causalidade para a ação humana, o que é impossível de ser explicado se recorrendo ao “fantasma da máquina” que seria o espírito. O nosso comportamento tem que ser originado de alguma maneira naturalmente explicável.

Ou ele é gerado de forma completamente aleatória (imagine uma “loteria” que existisse no cérebro, sorteando as condutas possíveis... isso não parece plausível, não é mesmo?), ou ele é causado de alguma maneira. Vimos que para os pós-modernos e os marxistas, é somente a interação sociocultural que molda nosso comportamento.

Mas isso tampouco faz sentido. Pergunte a um pai que cria dois filhos da mesma forma se eles não têm personalidades muito distintas. Ou então junte dois gêmeos idênticos criados em lares separados e veja o quanto do comportamento de ambos é semelhante (há uma extensa pesquisa disso sendo conduzida pelo Depto. de Psicologia de Harvard, e os resultados são impressionantes). Ou então vamos analisar a lista de “universais humanos”, isto é, características que ocorrem em todas as sociedades humanas, por mais distintas que sejam suas culturas. Cada sociedade tem as mais variadas formas de vestir-se; mas em todas elas vestimenta ou ornamentação corporal são símbolo de status. Há sociedades canibais, há outras em que isso é impensável, há sociedades que estimulam a pedofilia e o homossexualismo, há outras que criminalizam essas condutas. Mas em todas elas os homens são mais violentos que as mulheres. Temos no ocidente o “due processo of law”, um processo penal que garante direitos humanos e ampla defesa, mas entreguemos o estuprador às mãos do pai ou marido da vítima, e veremos uma vingança brutal e sangrenta.

Se o homem é uma “Tabula Rasa”, por que é que as crianças começam a rir a partir dos 3 meses de vida, mesmo que tenham nascido cegas ou surdas? Se os nossos valores éticos é que guiam o comportamento, como explicar que consideremos compreensível que um pai que tenha que escolher entre a morte de um filho seu e a de 5 outras crianças deixe com que estas pereçam?

É... algo deve estar errado com a visão tradicional de que o homem é um animal para algumas coisas (sexo, alimentação, ou outros ramos da existência em que dominam os “instintos”) e um frio e meticuloso intelecto em outros (seria a nossa parte “racional”, que guia a nossa interação social).

A etologia e, notadamente, os primatologistas, estão nos fazendo o grande favor de mostrar que há outros animais com vida social e complexos traços culturais (linguagem, uso de ferramentas, comportamentos morais, disputas políticas, etc). Com isso, podemos acreditar que há uma “natureza humana” de fato. E que ela não se limita ao nosso lado “selvagem”, mas governa boa parte de nossa existência. Por fim, concluímos que, se isso vem de algum lugar, a única explicação bem fundamentada que temos hoje é que o homem e suas características comportamentais resultam de um processo de seleção natural, inserido nos milhões de anos de evolução da sua espécie, e que possibilitou a transmissão hereditária daquilo que nos define.

Para o humanista que estiver lendo essas linhas indignado, peço que releia as milhares de páginas que a literatura ocidental nos legou. De Homero a Shakespeare, passando por Cervantes, Guimarães Rosa, Dostoievski, Machado de Assis, Sófocles e Dickens, temos facilmente reconhecíveis os vícios e virtudes universais da espécie humana. E não é pretensioso afirmar que, assim como no passado e agora, no futuro aquelas pessoas expansivas e com melhor retórica dominarão grupos carismaticamente, os políticos sempre mentirão, a violência e o crime estarão presentes em qualquer sociedade, haverá desigualdade social* e sempre haverá ciúme, inveja e ganância, mas também esperança, altruísmo e cooperação. Em outras palavras: eis a natureza humana. "Homo sum. Nihil alienum homini a me puto", escreveu o dramaturgo latino Terêncio (“Sou humano. Nada do que é humano julgo ser alheio a mim”).



Estou dizendo que tudo está nos genes do Homo sapiens? Absolutamente não. Como qualquer um versado minimamente em genética sabe, os genes sozinhos não são nada. O nosso comportamento resulta de uma complexa interação entre o que é universal (estrutura biológica) com o que é imensamente variável (o ambiente: aí incluímos desde a geografia até a cultura humana, que é incrivelmente diversificada). Não temos a oposição nature vs. nurture, mas a dinâmica correlação entre ambas. O nosso “instinto moral” pode nos dar um senso inato de equidade, mas “o que é justo?” é uma pergunta cuja resposta depende inteiramente do contexto sociocultural. Os nossos genes podem ser programados para procriarmos o máximo possível e reagirmos violentamente à agressão, mas a cultura pode nos ensinar planejamento familiar e pacifismo. E por isso a cultura continua sendo fundamental.

Digo isso porque, mesmo admitindo que nossas ações resultam não de um espírito imaterial, mas da cognição, e que esta se passa no cérebro humano, moldado após milhões de anos da evolução da espécie, e conforme interações entre o que nos é inato e o que a vida em sociedade nos apresenta, não temos que aceitar um determinismo tosco. Afinal, como afirma Dennett no livro citado, nós humanos temos plena consciência do que se passa conosco, e somos, mais do que qualquer outro animal, capazes de planejar nosso futuro. Nosso comportamento tem causas que podem ser exploradas, mas nós temos a nítida percepção de sermos livres. O livre-arbítrio, nesse sentido, se coaduna com uma explicação naturalista, não-sobrenatural, da condição humana.

O filósofo italiano Pico della Mirandola (1463-1494) escreveu: “tu és árbitro e soberano artífice de si mesmo”. Revisitando a fala do pensador, eu diria que sim, somos árbitros do nosso destino, porque assim nos sentimos; podemos não ser soberanos, mas, exatamente para podermos ser um pouco mais donos de nós mesmos, temos que conhecer bem aquilo que inevitavelmente faz parte de nossa natureza**.

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* Não estamos com isso esposando nenhum conformismo com a pobreza ou a miséria. Fato é que toda organização animal, em face de recursos escassos (alimentos, território e parceiros sexuais) resulta em desigualdade social. Contudo, devemos buscar, dentro da desigualdade que é inevitável, um mínimo de dignidade para todos. John Rawls, em seu Theory of Justice, assevera que a desigualdade em si não tem problema algum, desde que todos tenham, no “ponto de partida”, condições iguais para batalhar, meritocraticamente, por riquezas. Acreditamos que a democracia só é possível se o Estado garante a todos os cidadãos os direitos sociais básicos.
** Como já afirmei aqui antes, creio que os avanços da tecnologia nos campos da genética e da robótica possibilitarão, ainda no período de nossas vidas, mudanças radicais no que chamo de “natureza humana”. Aí sim, teremos transcendido os limites do humano, demasiado humano.

10 comentários:

Mateus disse...

Finalmente você escreveu um texto à altura das minhas expectativas sobre você.

Quanto à complexa interação entre aspectos genéticos, ambientais e culturais, penso que eles podem muito frequentemente ser confundidos. Além disso, eu ainda preciso de um argumento mais sólido para dizer que a seleção genética apresenta influencias no comportamento, a hipótese das condições de possibilidade ainda me parece mais sensata.

Acho muito pouco elegante essa sua teoria sobre princípios comportamentais em conflito.

Abração,
M.M. Araujo

Anônimo disse...

É uma pena que vocês escrevam com tão pouca freqüência.

Anônimo disse...

De um filósofo psícólogo cognitivista transhumanista para outro, gostei do seu texto.

Diego Caleiro

Anônimo disse...

Muitíssimo bom.

Oyama disse...

"Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana."

Bakunin

Ricardo Horta disse...

Jeferson,

Seu comentário renderia um bom texto neste blog. Não entendi porque você preferiu botá-lo aqui no rodapé.

Como seus questionamentos são muitos, vou tentar responder de forma sintética:

Na sua ótica, falar em Natureza Humana ou Intelecto parece dar na mesma, já que se deve levar em conta os fatores socioculturais tanto quanto os biológicos. Eu estaria dando voltas para chegar ao mesmo lugar: o retorno do fantasma.

A questão é que falar em natureza humana enquanto objeto de estudo não é dizer o mesmo que "temos um intelecto". Lembra que conversamos sobre o problema da consciência? Bem, é possível explicar o fenômeno da consciência sem chegar perto do fantasma da máquina.

Aliás, a idéia do Dennett de que nós não temos um "self" central, que controla e racionaliza os estímulos que recebemos (ele critica essa visão do "teatro cartesiano"), mas antes uma "máquina joyceana", um fluxo de estímulos que competem entre si e são selecionados, é uma boa tentativa, monista, de descrever como pensamos e sentimos.

Assim, a leitura da liberdade não como uma realidade, mas como uma forma como a nossa consciência capta as coisas, não tem nada de essencialista.

Você fez uma crítica apressada: eu falei que o debate "nature vs. nurture" esteve presente na consolidação das disciplinas conhecidas como ciências sociais. Durkheim trouxe o primado do coletivo, da gestação dos "fatos sociais" enquanto coisas; Boas atacou o evolucionismo, banindo a biologia da antropologia nascente; Freud defendia algo como a natureza humana, tanto é assim que trouxe a idéia de inconsciente, presente em todo ser humano. Em não afirmei que eles tinham idéias marxistas, como você parece ter entendido.

Quanto ao seu ataque ao termo "natural", ressalto você e o Mateus perpetuam a idéia (errada) de que um fator biológico precisa ser determinante. Não é assim que ocorre. Você sabe que, se tiver muitos casos de parentes que tiveram problemas cardíacos, você terá uma tendência hereditária para tanto. Mas isso não significa que você morrerá disso. Depende da interação dessa tendência genética com seus hábitos de vida (alimentação, fumo, bebida, stress, etc).

As críticas à genética comportamental se nutrem deste equívoco, o de que se algo é biológico, então temos um cenário determinista.

Por fim, outra crítica que você tem me dirigido com frequência é a arbitrariedade de se optar por um objeto de estudo como "religião", "crime", "ciúme", pois o que eles designam é algo contextual e variável.

Bem, se você mesmo os chamou de "condicionantes universais que a convivência social impõe", concorda que, mesmo que variem no espaço e no tempo, eles ocorrem nas sociedades. O que é crime para um canadense, um ashanti ou um mulá xiita varia imensamente, mas toda sociedade elege certas condutas como puníveis. Logo, o crime é universal. O que é crime, não. A religião é universal. Como é o culto, quais suas prescrições, não.

Como já debatemos antes, essas categorias são necessárias para o conhecimento. Não são "essências" idealistas. Uma coisa é falar dogmaticamente em "Deus" (algo impossível de se designar, ou de embasar uma teoria científica).

Outra bem diferente, usar os termos "átomo", "força", "crime", "consciência", etc, sem a pretensão de que eles encerrem uma VERDADE última, mas apenas a de que eles expliquem os fenômenos

Mateus disse...

Você sabe que, se tiver muitos casos de parentes que tiveram problemas cardíacos, você terá uma tendência hereditária para tanto. Mas isso não significa que você morrerá disso. Depende da interação dessa tendência genética com seus hábitos de vida (alimentação, fumo, bebida, stress, etc).

Com isso tudo aqui em cima eu concordo, mas isso não parece ter relação nenhuma com a conclusão:

Quanto ao seu ataque ao termo "natural", ressalto você e o Mateus perpetuam a idéia (errada) de que um fator biológico precisa ser determinante. Não é assim que ocorre.

Fatores biológicos não são princípios Alexyanos. Eles são condições de possibilidade. O seu exemplo supra confirma isso.

Ricardo Horta disse...

Mateus,

Você só repetiu o que eu disse.

Onde está a discordância?

Mateus disse...

Eu estou dizendo que eu não perpetuo a idéia (errada) de que um fator biológico precisa ser determinante.

Eu só digo que eles não são princípios ponderáveis.

Ricardo Horta disse...

Você está usando Dworkin para discutir biologia. Isso sim é samba do crioulo doido.