terça-feira, 12 de junho de 2007

Dois conceitos de utilidade e o lugar da filosofia

Qualquer pessoa que se pretenda fazer respeitar na filosofia contemporânea terá de estar de acordo com a seguinte negação: A verdade não é a correspondência de uma proposição com a realidade.

Da própria concepção atual de verdade, como acordo entre sujeitos, temos a necessidade de estabelecer esse acordo prévio, em relação aos pressupostos assumidos por todos os debatedores. Nesse momento surge o recente debate entre Rorty e Habermas. Esse acredita que todos estão, de alguma forma, obrigados a aceitar os pressupostos do debate. Aquele acreditava que aqueles que não assumissem o pressuposto do debate deveriam ser solenemente ignorados [1].

Como se pode perceber, o argumento de Rorty tem a vantagem de não travar o debate em uma discussão preliminar, acerca da eticidade do discurso. Como nossa pretensão não é discutir o discurso, nem pode a humanidade parar durante alguns séculos para se resolver essa questão, vamos ficar com Rorty e ignorar solenemente os argumentos que se baseiem na negação, ou na tangenciação dos pressupostos assumidos no debate.

O termo útil, na expressão: “a ciência deve ser útil” pode ser entendido de duas formas, cuja diferença tem sido sutilmente ignorada pela maioria das pessoas e grupos sociais, podemos ler a expressão supra como “a ciência deve provocar aumento na qualidade de vida [2]” E também como “a ciência deve explicar da melhor forma possível [3]”.

Essa distinção se torna importante quando abandonamos a noção de verdade como correspondência com a realidade. E nossa ciência [4] passa a buscar a utilidade e não mais a verdade. Isso porque o que busca uma ciência especulativa, e, portanto, nosso raciocínio não vale para as engenharias, aí incluídas a jurídica e a de políticas públicas.

Quando fazemos nossa investigação não em busca da melhor representação da realidade, nem muito menos a realidade, ela mesma. Tampouco buscamos a melhoria da qualidade de vida, buscamos apenas nos tornarmos capazes de responder a um maior número de questões, reais ou hipotéticas, sobre o tema escolhido.

Por fim, gostaria de ressaltar o absurdo de pensar que a utilidade como qualidade de vida, em relação à investigação científica especulativa. Pois, dizer que buscamos a qualidade de vida, como sinônimo de felicidade, ao fazer nossa investigação pressupõe que tenhamos como certo a existência de uma felicidade real que deve ser descoberta pelo homem, e ainda mais, que essa felicidade real já foi encontrada no conceito liberal, ou da ONU, de qualidade de vida.

NOTAS:

[1] Eles deveriam ser ignorados no plano do debate filosófico, plano no qual eles poderiam ser ignorados. Em planos como a política, no qual todos devem ser levados em consideração sempre que se pretender uma democracia, a solução é se utilizar de argumentação retórica. Ou seja, usar qualquer argumento que se tenha a mão para convencer o maior número possível de pessoas, com ou sem pressupostos assumidos, ou em outras palavras, aceitar o sábio conselho de La Fontaine: “Se quer convencer uma pessoa, conte-lhe uma história”. Com isso Rorty migrou para Letras.

[2] Qualidade de vida é um pressuposto assumido por este debate. E vamos entendê-lo em relação ao sistema de IDH utilizado pela ONU: Expectativa de vida + Renda per capitã + Educação.

[3] Se alguém quiser uma explicação melhor disso aqui, pode entender como explicação não circular, ou se remeter à máxima de William James segundo a qual “qualquer diferença deve fazer diferença”.

[4] Não vejo nenhum motivo que possa levar a sério para afirmar que existe alguma diferença entre ciência e filosofia. Tanto no sentido da filosofia se tornar ciência, uma vez que perde seu posto de tribunal do cientifico, ou em outras palavras, com a derrocada da epistemologia, quanto no sentido da ciência se tornar filosofia, pois, quando o método cientifico é questionado, e a própria idéia de representação da realidade com ele, não há nenhum valor que faça com que a ciência seja diferente da filosofia. Nosso compromisso não é com a realidade, mas com a justificabilidade e a utilidade de nossas proposições.

6 comentários:

Joao Vitor Loureiro disse...

O que vem a ser a "derrocada da epistemologia?" Quais são seus sintomas? Podemos enterrar, não obstante, outros ramos da filosofia; ontologia, axiologia, fenomenologia?

Meu incômodo são as suas notas de rodapé: Será mesmo que ciência guarda relação apenas com justificabilidade?
Uma concepção ideológica justificável é científica? O nazismo é científico?

Mateus disse...

Derrocada da epistemologia é a perda do status de meta-ciência da filosofia. A filosofia não guarda uma intimidade maior com entidades extra-mundanas, divindades e semelhantes. A filosofia não pode julgar o que é científico e o que não é. A partir de Heidegger e Wittgenstein.

Sobre as notas de rodapé:
O que há, além da justificabilidade para a ciência guardar relação? Se for a utilidade como qualidade de vida, a resposta é sim, nas ciências aplicadas como as engenharias.

A segunda pergunta não faz sentido internamente. E portanto não pode ser feita. Seria o mesmo se eu te perguntasse: O Azul do céu da Terra pode ser Vermelho em Marte?

A última pergunta não pode mais ser respondida depois do fim da epistemologia. Não existe tal coisa como uma ciência que possa ser certa mesmo que não concordemos com ela. Nós não concordamos com o Nazismo, portanto ele é errado, mas não em si mesmo. Essa forma de pensar tem a vantagem de nos manter atentos para a possibilidade de um grupo muito grande de pessoas começar a concordar com o Nazismo. Temos que nos defender politicamente disso.

Ricardo Horta disse...

Mateus,

O texto ficou muito bom, embora eu discorde, e muito, das conclusões.

A nota 1 foi brilhante. Mas vamos ao que interessa: as críticas.

Preliminarmente: falar que o Rorty "achava até uma semana atrás" foi uma pegadinha de mau gosto. Se fosse assim, o Platão teria deixado de adotar a Teoria das Formas há 2400 anos, quando morreu.

Analisando o mérito: vamos para a nota 4 - não há um único método científico, e é ao ingorar isso que seu texto descambou. Cada ciência tem um método distinto uma do outra, havendo em comum entre eles apenas alguma semelhança de família (são falsificáveis, dependem de experimentação, etc - combine as semelhanças) - ora, a história tem um método radicalmente diferente do da física quântica, mas ambas são ciências; e não são filosofia.

Rorty discordaria da sua equivalência entre ciência e filosofia. Rorty era pragmatista. Logo, sustentava que a ciência, por propor soluções empiricamente funcionais, não só é distinta da filosofia, como cumpre vários papéis que esta não cumpre (e vice-versa).

A ciência lida com aquilo que ela, linguisticamente, enquanto práxis social, convenciona como "dados". A filosofia não. Quer dois exemplos simples? Não se faz biologia sem ter em vista algum organismo autopoieticamente organizado. Não se faz economia sem algum conjunto de números acerca de valores, produtos ou fluxos de riqueza quaisquer.

Já a filosofia pode ser feita sem esse "suporte fático", desde que estejam presentes regras de caráter procedimental, já que ela pode ser definida como um debate, dentro de uma determinada tradição, na forma argumentada.

É por isso que a Medicina inventa medicamentos e venenos, mas a Filosofia inventa apenas idéias e visões de mundo.

Você só adotou essa posição maluca porque no Direito a historinha do Ser vs. Dever-ser embola o meio de campo.

Por fim, de fato não há uma "felicidade real". Contudo, embora indefinível e completamente subjetiva, não-quatificável (ao contrário do que Bentham preconizava), ela é detectável. Pessoas se sentem felizes ou infelizes. Você pode pragaticamente constatar isso.

A meu ver, a felicidade se refere ao nível de prazer físico e mental que as pessoas ordinariamente têm em suas vidas e à auto-imagem que fazem de si mesmas. E, de fato, a ciência, em si, não tem nada a ver com isso.

Ricardo Horta disse...

Em tempo: a epistemologia não morreu. Ela se tornou Filosofia da Mente.

A afirmativa não é minha, é de um estudioso que sabe o que fala, mas o meu objetivo é que vocês dêem a devida importância aos tópicos que estou escevendo sobre o assunto.

Mateus disse...

Responderei suas objeções Ricardo com um novo post. Da mesma forma que esse post representa uma resposta a sua última postagem.

Ricardo Horta disse...

Esclarecendo a última afirmativa: do mesmo jeito que os modernos se perguntavam com adquirimos o conhecimento, e Kant analisou as suas condições de possibilidade, a Filosofia da Mente, ao buscar a interface com a Neurociência e com as Ciências Cognitivas, pretende responder às mesmas questões.

Evidentemente, ela não traz respostas acabadas, nem para todos os campos dos conhecimento. E é um campo específico. A ressalva se faz necessária, para que vocês não achem que eu defendo uma panacéia.